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Cadernos de Estudos

 Territórios Dramáticos

Estudos realizados pela Turma do Dionísio sobre o Teatro de Formas Animadas, referenciados na diretora e pesquisadora Ana Maria Amaral. Investigações sobre as interações entre teatro de atores e bonecos.

Teatro de Formas Animadas
Ana Maria Amaral
A pesquisadora Ana Maria Amaral utiliza a expressão Teatro de Formas Animadas para designar um amplo campo da produção teatral, que inclui o teatro de bonecos, o teatro de máscaras e o teatro de objetos. O termo “forma” é usado pela autora para “expressar a materialização de uma ideia” (AMARAL, 1993, pg. 18) e está relacionado à ideia de animação, ou seja, à possibilidade de provocar uma espécie de “ilusão de vida” a algo inanimado.
A animação permite “dar vida” à matéria, por meio da transferência de energia:
Animação é a relação do movimento com energia. Animar um objeto (máscaras, bonecos, objetos naturais ou funcionais) é imprimir-lhe movimentos dotados de energia... Animar um objeto é carregá-lo de energia(...) Energia é algo que liga a matéria ao espírito, é o que dá ao objeto a ilusão de vida; é também o que nos mantém vivos. (AMARAL, 1993, pg. 285)
É a capacidade de animar o inanimado que possibilita criar personagens, contar histórias. Enfim, animar é o princípio que desencadeia o processo de criação no Teatro de Formas Animadas:
...no teatro de formas animadas, os objetos materiais inanimados (máscara, boneco, objeto ou simples imagem) ganham vida e passam a representar essências (por extensão da energia vital do ator-manipulador). E, ao se tornarem personagens, isto é, ao serem animados, perdem as características de corpo inerte e adquirem anima, isto é, alma, passando a transmitir conteúdos, substâncias... (pg. 243)
Para Ana Maria Amaral, o Teatro de Formas Animadas é metafórico, pois as formas “são símbolos, não simplesmente colocados em cena, mas dramatizados”. Dessa forma, se estabelece a relação imprescindível entre drama e movimento. Considera assim, que essa forma teatral é “a arte da imagem e do movimento.” (AMARAL, 1993, pg. 245)

A Máscara
Peça Cobra Grande, 2006
A máscara, carrega em si a capacidade de disfarçar e simular. Por isso, transforma quem a usa e quem a observa. A máscara também remete a um universo simbólico que está para além do que é aparente ou do que se vê de imediato. Neste processo de construção simbólica ocorre uma intermediação, seja na forma de palavra ou imagem, construída por alguém para o outro. Ana Maria esclarece:
No teatro, como em toda obra de arte, existe um sentido aparente e outro não-aparente... Atitudes, palavras, ações é o que o homem usa e faz diariamente. Mas na comunicação cotidiana o que acontece permanece no nível do aparente, e no teatro, como na arte, o aparente é apenas simbólico, pois há sempre algo além do que se vê. É a ideia. São conceitos abstratos... (AMARAL, 1993, pg. 25-26)
Para a autora, o uso da máscara no teatro “esconde” o ator, ao mesmo tempo que revela o personagem. Ela também auxilia o ator a perceber o seu entorno de uma maneira não habitual, favorecendo outra percepção/consciência de si e do mundo que está a sua volta:
A máscara faz com que ele perca a relação habitual que mantém com o mundo a sua volta e lhe dá uma sensação nova de espaço e tempo, favorecendo também a sua introspecção. A máscara ensina o ator a manter uma atenção contínua sobre seu corpo e sobre seu rosto, obriga-o a controlar seus movimentos. O ator é levado a fazer movimentos mais lentos e mais energéticos. Ao mesmo tempo em que provoca uma conscientização do corpo, a máscara favorece a interiorização. (AMARAL, 1993, pg. 279)
A máscara provoca transformações imediatas para quem vê e quem a usa. Para o ator, pode causar inicialmente, sensação de desconforto, mas possibilita uma nova percepção sobre si mesmo e os outros:
...ao vesti-la, percebe uma limitação no seu campo visual, a respiração é dificultada e a voz ou se distorce ou perde força. Em compensação, o espaço à sua volta toma outras dimensões, o simples mover do corpo exige uma atenção tal que, para mínimos gestos, exige-se muita concentração. A máscara leva à conscientização do corpo, tornando o ator muito sensível aos estímulos físicos que o cercam... (AMARAL, 2002, pg. 43)
Ao mesmo tempo, a máscara remete a um sentido que transcende o uso de um objeto qualquer. Na relação do ator com a máscara persistem os resquícios de um caráter sagrado decorrente da presença da máscara em cerimônias rituais:
A máscara ritual não é um objeto qualquer. Tem um sentido sagrado. A máscara ritual encerra em si forças. É uma transferência de energias. Nos rituais as máscaras têm uma função, estão ligadas a ações, ações-essenciais. Têm também um sentido de mutação, metamorfose... A Máscara ritual transcende. Dá vida a um ser divino... Concretiza conceitos abstratos. Confere uma qualidade espiritual ao homem. Representa o espírito dos mortos e dos animais... (AMARAL, 1993, pg. 31)
A máscara ritual provoca efeitos contraditórios e complementares. Ao mesmo tempo em que possibilita a identificação com aquilo que se quer imitar, também permite que aquele que a usa possa distanciar-se de si mesmo ao vivenciar outra personalidade.
Nos rituais ocorre um desdobramento imediato de personalidades. Ocorre uma identificação com o que se pretende imitar, seja com uma entidade sobrenatural, seja com forças da natureza ou com animais. É um sair de si e um entrar noutra personalidade. Processo esse semelhante ao do delinear de personagens. É o homem que, saindo de seu quotidiano, se transforma, acarretando modificações ao seu redor e transformando o seu ambiente, apresentando outra realidade... (AMARAL, 1993, pg. 33)
A presença da máscara em cerimônias rituais permite ao ser humano fortalecer o acesso a um universo sobrenatural para buscar uma explicação mágica para fenômenos naturais e sociais. Os gestos repetitivos dos rituais representam aspectos essenciais e verdadeiros de uma sociedade, num determinado momento histórico.
Historicamente, existem diversos tipos de máscaras no teatro, que podem ser caracterizadas segundo sua forma, tamanho ou material com que é produzida. Essa classificação implica em diferentes formas de uso e relação com elas:
De acordo com a forma, elas podem ser neutras, expressivas ou abstratas... De acordo com o material com que são confeccionadas, podem ser rígidas ou maleáveis. As rígidas são construídas de madeira, metal, couro, tecido, papel machê, plástico, isopor. As maleáveis podem ser feitas de tecido ou couro fino, espuma, látex. De acordo com o tamanho podem ser faciais (cobrindo todo o rosto), meia-máscara (só a parte superior do rosto), parciais (nariz, orelha, partes do corpo), ou corporais (corpo inteiro). (AMARAL, 2002, pg. 44 – em nota de rodapé)
Para desenvolver a interpretação, a autora propõe a realização de exercícios em duas etapas: a primeira utilizando a máscara neutra e a segunda, com máscaras expressivas. Mesmo que a neutralidade da máscara não seja possível plenamente, essa primeira etapa de trabalho prioriza exercícios com “máscaras sem características marcantes” e o despojamento do ator para criar o personagem (AMARAL, 2002, pg. 45). 
A máscara torna-se um objeto animado, na medida em que reage aos estímulos. O ator em máscara reage com todo o corpo, deixando claras as ações. Além da precisão das ações, a máscara pede um jogo cênico entre o personagem e o público, a triangulação:
As ações devem ser claras. Uma cena com máscaras é uma escrita. Cada frase deve ser anunciada separadamente e completada antes de se iniciar a próxima. O início e o fim de uma ação, o ritmo dos movimentos e as pausas equivalem a pontos e vírgulas. No jogo cênico com máscaras é interessante que ocorra a triangulação. Triangulação é quando a intenção, que antecede a ação, é mostrada através de uma troca de olhar entre personagem e público. Uma pequena pausa na qual a intenção de uma ação é reforçada num diálogo mudo entre o palco e a plateia. (AMARAL, 2002, pg. 55).
Teatro de Bonecos
 
Peça Segredos do Rio, 2011


O Teatro de Bonecos possui a capacidade de transitar entre o ser e o não-ser. É a energia do ator, transmitida pelo movimento, que torna possível essa passagem. 
A relação do ator no teatro de bonecos não é a mesma do ator no teatro em geral. No teatro, o ator cria um personagem que se relaciona diretamente com o público. Já no Teatro de Bonecos, o ator-manipulador transmite sua energia para o boneco e, de uma forma geral, permanece não visível para o público ou, pelo menos, sua presença não é diretamente percebida pelo público. 
Desse modo, a relação ator-teatro e ator-manipulador é marcada por semelhanças e diferenças. Ambos utilizam sua energia para materializar o personagem, mas utilizam meios diferentes:
O ator é aquele que no palco é visto, encarna e tem a imagem do personagem. O ator-manipulador é um ator que eventualmente se propõe ou, num determinado espetáculo, tem necessidade de animar e dar vida a personagens inanimados. Enquanto ator-manipulador, nem sempre é visto ou, quando visto, deve manter-se neutro para que o foco não caia sobre si, mas sobre o boneco ou objeto... (AMARAL, 2002, pg. 22)
É preciso compreender as especificidades de cada um para que a atuação possa se dar de forma mais orgânica e completa. No teatro de bonecos, o ator-manipulador usa sua energia para priorizar a atuação do boneco, concebido e construído previamente. Enquanto o ator cria o personagem que vai interpretar a partir das diversas possibilidades que surgem durante o processo de ensaio:
A força do boneco está em seus próprios limites, na sua incapacidade de poder fazer qualquer coisa que não seja estritamente aquilo para o qual foi feito. E, paralelamente, a fraqueza do ator reside exatamente nas suas enormes possibilidades, pois podendo fazer mil personagens diferentes, ele não é nunca nenhum deles. (AMARAL, 1993, pg. 73)
Para animar um boneco, o ator precisa conhecer a sua estrutura, determinada anteriormente, no processo de construção. A partir do conhecimento da materialidade, o ator busca a expressividade do boneco que manipula:
Para animar um boneco o ator deve observá-lo bem antes, captar sua essência e procurar transmiti-la. Para dar vida ao inanimado é preciso ressaltar a matéria, ressaltar essas peculiaridades intrínsecas da materialidade com que o boneco é feito. (AMARAL, 2002, pg. 80).
As características do personagem são criadas a partir da construção do boneco. O ator-manipulador observa e cria as ações, considerando essas características:
Antes de o ator-manipulador animar o boneco, ou seja, antes de habitá-lo, no sentido de dar-lhe vida, quem o construiu já o habitou. Já colocou ali um personagem... Na construção de um boneco também são criadas as suas possibilidades técnicas, o que, para sua encenação, é um fator determinante. (AMARAL, 2002, pg. 80).
O ator-manipulador cria movimentos próprios para dar vida ao boneco. O ator se expressa por meio do boneco e, na relação com o público, provoca a ilusão de que o boneco tem vida própria:
O público sabe que um boneco não se move por si, que alguém ou algum truque o faz mover-se, mas a consciência de haver um mecanismo não destrói a ilusão. O movimento do boneco em cena produz uma sensação na plateia e essa sensação é importante. A ilusão é consequência da sensação que se tem ao ver um objeto mover-se, aparentemente, por si. Não é o movimento que causa a sensação, ela é despertada pela relação que se cria entre o ator, o boneco e o público. A matéria em si não tem vida, mas a partir da emoção que o boneco desperta no ator, cria-se uma reação na plateia que provoca essa ilusão. (AMARAL, 2002, pg. 58).
Um dos aspectos importantes do Teatro de Bonecos é a possibilidade que ele tem de situar-se entre a realidade e a fantasia. Ao provocar a ilusão de vida por meio de um objeto inanimado, o boneco tende a aproximar-se do irreal, da caricatura e do grotesco. Sua linguagem o aproxima do universo fantástico, distanciando-o da concepção tradicional de arte como imitação da natureza. No entanto, cabe ressaltar que a aproximação com o irreal não o afasta definitivamente do real, mas, ao contrário, fortalece uma nova percepção do real.